“Se você não estiver nervoso é porque não está prestando atenção.” A frase é de Miles Davis. Por motivos óbvios, não se refere à atual pandemia, mas achei que poderia ser uma boa epígrafe a este artigo sobre o pesadelo sanitário e político em que nos meteram. Um pesadelo de proporções bíblicas; pois, além do apocalipse profetizado por São João e prefigurado pela covid-19, uma nova versão da oitava praga do Egito, aquela dos gafanhotos, ameaça lavouras dos dois hemisférios.
Quem leu a Bíblia sabe: depois dos gafanhotos vieram as trevas. Qualquer semelhança com os efeitos das tempestades de areia saariana que esta semana apagaram o céu de vários lugares mundo afora talvez não seja mera coincidência. E se a décima praga (a morte dos primogênitos) também vingar por estas bandas, Flávio Bolsonaro, o 01, não terá mais por que temer a justiça dos homens, só a divina.
Por falar em filho, Isabel Blanc, filha de Aldir, confessou dia desses que a frase que mais tem dito nos últimos tempos é “Não pode ser, não acredito”. Também vivia dizendo isso, mas faz tempo que dei um basta ao espanto e à incredulidade. Até que a espantosa fuga de Weintraub para Miami e seus desdobramentos, no último fim de semana, me provocaram uma recaída.
Weintraub, que viajou de classe econômica e pode voltar na classe Interpol se condenado pelo STF, criou uma categoria das mais paradoxais: o exilado a favor do governo que deixou para trás. No caso, com a ajuda capciosa do próprio presidente. É muita bizarrice junta. Foram pelo menos duas obstruções judiciais em sequência, tão inesperadas que nem deu tempo à fiel manada bolsonarista de lembrar, para efeito de simetria, de algum ministro dos governos petistas que, indiciado em inquérito, tenha fugido para o exterior com passaporte diplomático.
Weintraub seguiu o padrão de um governo pródigo em fujões. Bolsonaro fugiu de todos os debates eleitorais e, já eleito, dá entrevista coletiva em Davos 2019, também cabulada por Paulo Guedes e Sergio Moro. O gestor de rachadinhas e mumunhas milicianas Fabrício Queiroz andou sumido meses a fio até reaparecer na casa do advogado e operativo do clã presidencial, Frederick Wassef. O sumiço da vez é da mulher do Queiroz.
A aparente inadequação de Weintraub ao almejado cargo no Banco Mundial monopolizou de tal modo as análises da imprensa que a ninguém ocorreu notar que sua indicação não chega a ser um disparate. Em algum ponto os dois se afinam. Se com seus empréstimos o Banco Mundial beneficiou de algum modo povos indígenas e outras gentes e atividades execradas pelo ex-ministro, por outro lado incentivou e financiou golpes de Estado e autocracias anticomunistas pelo mundo afora. O golpe militar de 1964 abriu as torneiras do Banco, fechadas desde a posse de João Goulart.
Pesquisa que não sei mais se vi na televisão ou na internet revelou que as duas perguntas que os brasileiros mais se fazem atualmente são “quando teremos uma vacina eficaz contra o coronavírus?” e “vai ter golpe?”
A primeira ainda é irrespondível. A resposta à segunda já teve mais variações. No momento, um “não” consensual predomina entre os militares preocupados com a preservação de sua melhor imagem, a de isentos guardiões da Constituição. Mesmo entre os milicos de quem o presidente se cercou para, dizem as más línguas, dar – outra bizarrice – um golpe contra si mesmo, a falta de convicção parece superar a fanfarronice de alguns generais dados a ameaças metafóricas e vazias de sentido, já que seu chefe, sim, é quem mais tem “esticado a corda” para gerar factoides, manter-se no noticiário e tirar o foco de sua abissal e mundialmente avacalhada incompetência.
Bolsonaro não tem força objetiva para viabilizar suas presumidas ambições cesaristas, nem a oposição, desunida e inábil, encontra respaldo no presidente da Câmara para tocar adiante um processo de impeachment, que no máximo nos levará a um “bolsonarismo sem Bolsonaro”, com Mourão na presidência ou, para usar uma imagem cara ao vice, no “freio de arrumação”.
Estarão as forças armadas realmente incomodadas com os desgastes a que o presidente as vem submetendo? A militarização em massa do Ministério da Saúde foi um desastre completo e ultrajante. Contudo, não haverá golpe, porque segundo o antropólogo e professor da Universidade Federal de São Carlos (SP) Piero Leirner, há três décadas pesquisando e lidando com o pessoal da caserna, o golpe já se deu em 2014, com as primeiras intervenções sinérgicas das forças armadas e outros agentes públicos no “sistema operacional” do país.
A atual escalada do conflito político não é acidental, diz Leirner. Faz parte do projeto de “refundação do Estado” pelos militares, abandonado ou suspenso há 35 anos, com o fim da ditadura, e no qual Bolsonaro cumpre um papel específico, qual seja o de “para-raios sem fio terra”. O capitão põe fogo e os militares, se e quando necessário, bancarão os bombeiros, posando de “salvadores da pátria”. Leirner não perde tempo discutindo se os militares aprovam ou não o governo: “Eles são o governo”.
Quando e em quais circunstâncias os bombeiros entrariam em cena e descartariam o para-raios? Se ficar provada a ligação dos Bolsonaros com a milícia, os milicos largam de mão o capitão. Generais não obedecem a milicianos.
Se Bolsonaro não estiver com medo é porque não tem prestado atenção.
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